Patrícia Lopes
Bastos - plopesbastos@gmail.com
Associação
Nacional de Instrumentos Musicais (ANIMUSIC-Portugal)
http://www.animusic-portugal.blogspot.com/
Versão geral / Popular version of paper 3aAAa2
Apresentada na
manhã de quarta-feira, 17 de Novembro de 2010
2nd Pan-American/Iberian Meeting on Acoustics, Cancun, Mexico
O outro virou-se – eu também ouvira esse som,
ou melhor, sentira-o, mas não tinha a certeza. Aqui e ali
pássaros gorjeavam a desafio, esvoaçando entre os ramos das
árvores, e não consegui perceber se era um som de alguém
que se aproximava ou de algum pequeno animal no bosque. E mais outro e outro… Levantei-me e prestei
maior atenção, ouvindo os ecos nas colinas. Não havia
dúvida. Estavam a chamar-nos do monte. Ele olhou para mim e
começou a descer para o vale que nos separava do forte. Ainda tive tempo
de apanhar uma fruta no caminho, já adivinhava que nos esperava um fim
de tarde longo. Não sabia o que se passava, mas via os outros a subirem
com um ar preocupado.» Poderia ter sido este o pensamento, sem estas
palavras, de alguém que reconhecia o sinal de chamamento do grupo, de
alguém para quem os seus companheiros e os seus montes eram a garantia
de sobrevivência. Mais
tarde, talvez se tivessem ouvido, imaginamos nós, clamores, batidas nos
corpos, paus sobre paus, pedras sobre pedras, e mais e mais toques nas rochas
sagradas, ritmados, constantes, a levar ao transe. Uma celebração
ou um ritual que conjugasse os espíritos protectores e afastasse os
inimigos. Nada implausível. O som já era poderoso.
Ao admirarmos as
extensas galerias de arte visual que os nossos antepassados nos deixaram,
há milhares de anos, como poderíamos ofuscar uma
hipotética musicalidade? A utilização de instrumentos
musicais na pré-história é-nos chegada por vários
objectos encontrados em locais dispersos. Os mais evidentes serão
flautas, cornos e búzios, ou mesmo vasos sem fundo (tambores). Mas
talvez antes disso… antes de se poder criar ou recriar os instrumentos
para se fazer “um tal som”, usava-se o que se encontrava. Dentro de
cavernas subsistem ainda indícios da utilização de
estalactites com a indicação das “notas” com cores
(litofones suspensos). E na paisagem quase pristina de alguns recantos
esquecidos da Península Ibérica ponteiam sobreviventes rochas
sagradas, imóveis e silenciadas pela memória perdida.
Equipados com
toda a parafernália que achamos necessária, porque o
“voltar para trás” implica horas de caminhada e de
poluição na estrada, empreendemos conhecer estas rochas e,
suavemente, acordá-las. Iniciámos a procura, naturalmente, nas
que apresentam cavidades, marcas que nos apontam a viabilidade de uma
utilização percussiva. É possível que seja a primeira vez que se aplica uma
metodologia sistemática e comparativa para a análise das suas
propriedades sonoras. Baseando-nos em parâmetros científicos,
não desprezamos as referências lendárias aos lugares e
monumentos ancestrais. As perguntas vão sendo colocadas, e surgiram
já algumas respostas (vide
artigo publicado através do congresso “Vienna Talk 2010”,
editado pelo instituto Wiener Klangstil, Universität für Musik und
Darstellende Kunst Wien).
Dentro do
número de monólitos experimentados na região da Beira Interior
e Alentejo (concelhos do Fundão, Idanha-a-Nova, Castelo Branco e Castelo
de Vide), observámos que em certas rochas as concavidades são de
origem natural (queda continuada ou corrimento de água,
reacção dos componentes da rocha, etc.), e que em algumas pode
suspeitar-se serem geradas por acção humana, aliada eventualmente
à erosão natural. Seleccionámos, para o primeiro estudo
analítico (não invasivo), um grupo de quatro rochas que
apresentam características distintas, tais como
composição, posição (superfície na
horizontal ou na vertical), volume e paisagem circundante. Adicionalmente,
pudemos executar experiências com uma rocha fora de qualquer contexto
histórico, de dimensão menor e sem marcas, mas que apresenta
propriedades sonoras semelhantes. A localização e a
informação sobre as rochas estudadas podem ser obtidas na
Associação Nacional de Instrumentos Musicais, em Portugal (os
monumentos históricos estão protegidos por lei, sendo punida qualquer
infracção – a investigação está
reservada a especialistas, os quais utilizam metodologias
não-invasivas).
Em
relação a cada rocha seleccionada, o processo de
medição e identificação da superfície e das
covinhas, como são comummente chamadas, foi apresentado no
“Workshop on Diagnostics and Preservation of Musical Instruments”: On the field – universal measurement
(http://ravennamusicalinstruments2010.blogspot.com/p/programme.html). Depois de estudada a rocha,
seleccionamos os pontos de impacto e determinamos as coordenadas recorrendo a
uma rede com quadrículas de 50mm. O som do embate de uma esfera (PVC) conduzida através de uma calha
é gravado digitalmente e depois analisado. Numa segunda fase as
propriedades vibratórias da rocha (com martelo de impacto e acelerador)
e do solo serão estudadas para ajudar na compreensão tanto da
variação na qualidade sonora (entre pontos de embate e entre rochas
diferentes) como na projecção do som, na área circundante
imediata e distante.
Entre alguns dos
resultados do nosso trabalho, podemos adiantar que: em geral, os locais onde
estão situadas as rochas com propriedades sonoras são
geo-estratégicos, sendo os sons daí oriundos propagados com
facilidade nos montes vizinhos; num contexto de um grupo de rochas (como num
cromeleque), é tendencialmente a rocha (na maioria dos casos,
única) que apresenta marcas que possui propriedades sonoras e que vibra
no seu todo (as restantes absorvem e sufocam os impactos); não é
taxativo que as concavidades sejam os pontos sonoros mais significativos,
podendo sim corresponder, na área da superfície utilizada, aos
componentes da rocha mais frágeis, cedendo mais facilmente aos
hipotéticos impactos provocados pela mão humana – nestes
casos, a erosão natural terá contribuído para o
aprofundamento e alargamento das concavidades, e ao longo do tempo as diferentes
fracturas podem soltar-se e promover novas cavidades, com ou sem potencialidade
sonora (ver desenho). Podemos, em suma, considerar que existe uma forte
probabilidade de estas “rochas com covinhas” terem sido utilizadas
para a produção de som, para celebrações, rituais
ou simples sinalização.
Uma
interrogação fundamental permanece: terá sido a
música fruto do progresso e aperfeiçoamento das capacidades
humanas ou terá a música contribuído para esse mesmo
crescimento? Mediante as muitas questões ainda por responder,
continuamos o nosso trabalho, tentando fornecer mais elementos para a
compreensão da importância do som e da sua
organização abstracta no desenvolvimento do ser humano.
[Trabalho de
investigação apoiado em Portugal pela Fundação para
a Ciência e a Tecnologia/POPH do QREN e FSE, através de uma bolsa
de pós-doutoramento (BPD).]